O filme distópico The Giver integra a lista de filmes que eu não estava dando nada, mas que por um simples detalhe ou outro, acabei sendo arrebatada pela história e a forma como ela desenvolve temas complexos, com uma delicadeza digna de notabilidade, onde as memórias, não as nossas, determinam o que sabemos sobre nós mesmos e o mundo em que vivemos.
Fazendo um breve levantamento sobre o longa metragem, descobri que o mesmo é baseado no primeiro livro O Doador (1993) da série de livros "O quarteto do Doador" de Lois Lowry, formada também pelos títulos: Gathering Blue (2000), Messenger (2004) e Son (2012). A série de livros se passa na mesma era distópica, mesmo contexto, porém tem protagonistas diferentes e não consegui encontrar nenhuma informação sobre uma continuação das adaptações das obras para o cinema.
De qualquer forma, vale ressaltar que nesse mundo futurístico criado por Lois e dirigido na grande tela por Phillip Noyce, nós conhecemos a realidade de Jonas (Brenton Thwaites) e seus melhores amigos Fiona (Odeya Rush) e Asher (Cameron Monaghan), que apesar de sem cor, parece perfeito aos olhos dos desavisados.
Para começo de conversa, todos vivem em comunidades e unidades perfeitamente coordenadas por um grupo de anciãos sábios e liderados pela incrível Meryl Streep, mas essa coordenação nada mais é do que a aparente organização de tarefas e a certeza de que tudo funcionará corretamente. Para tal, todos os espaços, inclusive as casas, são monitorados por câmeras. Além disso, todos os cidadãos das comunidades passam por momentos específicos da sua vida, como aos 9 ganhar uma bicicleta e aos 18 receber uma designação que será sua até que ele seja idoso o suficiente para ir para Alhures, que ninguém sabe onde fica.
É neste momento que ficamos sabendo que a Jonas, um 18, como são chamados os que chegam a essa idade, foi confiada a importante tarefa de ser o Recebedor. Daí nós passamos a acompanhar o rapaz para entender esta importante missão, juntamente com o Doador (Jeff Bridges). No caminho construído pelo Doardor, percebemos, assim como Jonas, que a Comunidade não é tão ideal assim, tal como memórias são especialmente importantes para compreender contextos e, bom, sentir algo. Inclsuive a vida.
A história, em si, parte de uma ideia bem interessante da psicanálise que diz que as coisas só são entendidas e deixam de ser meras "coisas", quando elas recebem nomes. Assim, cores, sentimentos, odores, morte...todas essas "coisas" são desconhecidas às pessoas da Comunidade, uma vez que elas não sabem da existência das mesmas, sendo apenas o Recebedor aquele que detem os conhecimentos conceituais de tudo. Esse pequeno grande detalhe, é um dos motivos pelos quais a fotografia e a montagem do filme merecem especial atenção, a forma gradual com a qual meras "coisas" começam a ter uma importância tremenda para Jonas é visível na estética da obra, que também carrega em si diversos momentos de puro deleite, como as inserções em câmera subjetiva das lembranças que vão tomando conta da mente do protagonista.
Tudo para ele passa a ser um conceito, uma vez que ele começa a compreender por nome e pela lembrança de uma imagem doada, todo o antevir (não sei se a palavra existe, mas como queria fazer um contraponto com a noção de devir, achei que fazia sentido) do mundo, percebendo que mesmo que as "coisas" não mais recebem nomes, elas ainda existem e ainda são determinantes para o funcionamento do mundo. Alguns direcionamentos do filme me lembrou consistentemente Não me abandone jamais e A Ilha, principalmente a metáfora de Alhures (Elsewheres) e aparente ingenuidade dos habitantes da comunidade.
Também, vale ressaltar que como toda grande narrativa sobre mudança e saída da zona de conforto para aquilo que achamos certo, é tudo duvidoso, icógnito e aberto, de modo que o que resta é a nossa subjetividade, mesmo que o final seja completamente propenso ao que quisermos colocar ali, já que, uma vez que a linha é cruzada, tudo pode passar a fazer sentido. Ou não.
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