A flor que desabrocha na adversidade

[review sem spoilers]

Numa construção narrativa que se assemelha mais ao que a Disney fez para Cinderela, do que para títulos mais recentes, como A Bela e a Fera e Aladim, Mulan finalmente chegou, arrebatando tudo pela frente (positiva e negativamente) e tendo o seu lugar de centralidade (junto com o destaque a cultura leste asiática tem tomado nos últimos anos.


2020 com certeza vai entrar na lista de todo mundo como sendo um daqueles anos em que tudo e nada aconteceu ao mesmo tempo. Tudo, porque é impossível ignorar a pandemia, como isso tem influenciado na nossa forma de viver e o número irreparável de mortes causadas pelo Covid-19. Nada, porque eventos de abrangência mundial foram suspensos, juntamente com filmes e shows que foram cancelados indefinidamente. Numa esfera mais próxima, aniversários não foram festejados, feriados não foram aproveitados e muites estão num regime de home office até a "segunda ordem", que parece não vir.

Não diferente desse contexto, Mulan, versão live action do filme de 1998 da Disney - e particularmente, meu filme favorito do estúdio - que iria estrear nos cinemas do mundo inteiro em março deste ano, precisou ser cancelado, tendo tido a sua estréia só agora, no fim de agosto. Com uma proposta bem mais tímida do que a expectativa inicial e, ainda, sem muitas garantias de ter o retorno do investimento feito para a sua produção, a Disney lançou o longa metragem nas poucas telas de cinema que já voltaram a abrir em alguns lugares no mundo (como o tão querido mercado Chinês) e de modo premium em sua plataforma de streaming, Disney+, que ainda não está em todos os países. Aqui no Brasi, por exemplo, ainda não chegou.


Bom, como se trata de Mulan, eu não poderia ficar sem conferir esse filme. Especialmente porque eu esperei muito por ele, fiz campanha, acompanhei cada novidade e, de uma certa maneira, ansiava por vê-lo no cinema, tal como eu fiz com todas as outras versões em live action que sairam até agora. Como estamos em tempos atípicos, a forma como eu assisti também foi atípica, mas em nada diminuiu o meu deleite de fã, misturado a animação de finalmente poder conferir com meus próprios sentidos.

Para não correr o risco de dar spoilers, mesmo que a linha principal da história seja em grande parte semelhante à animação, não quero me deter muito nos acontecimentos que decorrem ali, mas gostaria de atestar uma impressão que tem estado comigo desde que a Disney começou a fazer essas versões em live action: o fato de que ela ainda não definiu muito bem qual é o seu objetivo com essas obras. 

Veja bem, atualmente já tivemos uns dois punhados de filmes em live action, revisitando narrativas que antes foram apresentadas para nós em forma de animação, porém elas não seguem uma linha de abordagem clara. Enquanto algumas, como: A Bela e a Fera, Aladim e Rei Leão seguem recontando a mesma história da animação - talvez acrescentando alguns detalhes extras para compor e até justificar a mudança de formato; outras, como: Cinderela, Malévola e Alice, abordam a história de outros ângulos, trazendo novas abordagens, novos personagens e até dando ênfase em outros aspectos que na animação não foram explorados. Nem mesmo os enquadramentos, figurinos e cenários se assemelham tanto assim aos seus antecessores, restando a nós a vaga lembrança do que era.

Tal como eu venho aprendendo com mais e mais afíncuo graças aos meus estudos sobre dinâmica transmídia, cada formato tem suas particularidades e exigências próprias, da mesma forma como cada vez que uma narrativa é recortada por uma nova mídia ela pode (e talvez até precise) passar por uma reforma para que essa passagem não vire uma mera transposição e um mero fan-service meia boca, que agrada pelo efeito de nostalgia. Quando uma narrativa, grandiosa como as que já foram contadas pela Disney, é revisitada anos depois, ela gera expectativas em seus fãs e gera curiosidade sobre qual será a forma pela qual tal narrativa será (re)apresentada. É sensato dizer que estamos procurando familiaridade, mas também estamos procurando novidade. Um sem o outro torna o produto apenas um variante do primeiro e, talvez, bem mais esquecível.

Fico me perguntando se, depois do lançamento do filme em live action de Rei Leão as pessoas preferem assistir a animação, ou a nova versão...


Até então, minhas duas melhores referências, de versões novas e que tinham dado certo eram: Mogli e Cinderela. Exatamente nessa ordem. Em ambos os casos, as suas versões em live action traziam os sequenciamentos dos seus filmes de origem, com aqueles personagens encantadores, mas tiveram a possibilidade (e se debruçaram nela) de ressaltar aspectos significativos e que realmente fizeram a diferença nessas histórias. Aspectos que tornaram as narrativas mais profundas, sem ofuscar os outros elementos (como Malévola errou a mão e fez - aff). Em Cinderela, por exemplo, temos a oportunidade de entender a psiquê da Lady Tremaine (Cate Blanchett), que julga Ella (Lily James) e toda a sua juventude; também conhecemos Kit (Richard Madden) com mais detalhes e ele deixa de ser o príncipe encantado, sem personalidade e sem força da animação. Mesmo assim, a essência de Cinderela permanece. Ela é boa. Ela é sincera. E você entende de onde isso veio.

Uma sobreposição muito interessante para atualizar a personagem e a sua história, que já estavam sendo consideradas ultrapassadas para o contemporâneo, ao mesmo tempo em que resgata as suas qualidades e os valores que, de fato, ainda são importantes para os dias de hoje. Algo bem disneyano de se fazer, eu até diria.


Ok, mas o que isso tem a ver com Mulan?

Bom, posso dizer pra vocês, que eu já sabia que esse live action não seria uma adaptação idêntica a animação. Logo de cara soubemos que não teríamos Mushu (desonra!), depois soubemos que não teríamos as músicas (sem "homem ser...") e depois soubemos que Shang também não estaria lá para liderar as forças imperiais. As perdas todas foram justificadas (muito bem, inclusive), por Niki Caro (que dirigiu A Encantadora de Baleias) e o produtor Jason Reed: Mushu seria trocado por uma fênix, que na cultura chinesa é um símbolo ligado ao feminino; de que na guerra as pessoas não estão cantando e Shang seria substituido por dois novos personagens, que representariam, de um lado uma figura de guia paterna e de outro, um recruta (como Mulan), que poderia ser um interesse amoros - na época Reed ainda reiterou que:

"Acho que principalmente nos tempos do movimento #MeToo, ter um comandante que também é o interesse amoroso era muito desconfortável e não achamos apropriado. Pensamos que, de certa forma, seria como justificar comportamento de estamos fazendo de tudo para sair da nossa indústria. Então dividimos Li Shang em dois personagens. Um sendo o Comandante Tung, que serve como um pai adotivo e mentor durante o filme. O outro é Honghui, que é seu igual no exército. Não tem uma dinâmica de poder entre eles, mas tem a mesma dinâmica do original que é 'Eu te respeito muito e porque eu gosto tanto desse cara? E o que isso diz sobre mim?'" Fonte

Tudo justificado e sem nenhum juízo de valor proferido da minha parte antes da hora, vamos ao filme, sem spoilers e resumidinho no que você pode esperar?

- Uma retomada carinhosa da história, dando papel de destaque para as diferentes relações de gênero feminino inseridas naquela cultura. Temos mulheres fortes, mulheres submissas, mulheres doces, mulheres gentis, mulheres audaciosas, mulheres fortes, "uma deusa, uma louca, uma feiticieira...". 

- Existe uma real crítica, mesmo que seja feita de modo bastante sutil, de que: ainda que essas mulheres sejam especiais, elas só podem tomar o seu lugar como tais se elas forem aceitas por um homem (ou um grupo de homens). 

- O foco nas questões de: dever, honra e destino, que se tornam lemas importantes, juntamente com as palavras que regem o juramento dos guerreiros "Lealdade, Coragem, Verdade" também ecoam bravamente e são utilizados para prestar várias homenagens à cultura chinesa.

- Cenas lindas, com cores que transpassam de uma cena a outra, compondo um quadro visual que deixa a gente apaixonada com a fotografia. 

- A montagem deixa um pouco a desejar, optando por cenas com cortes meio esquisitos. Em alguns momentos parece que a personagem se "teletransporta" do ponto A ao ponto B, como se fosse ali do lado. Tem uns jump cuts para os rostos da personagem e de repente ela está em outro canto, é meio esquisito e deixa a gente meio perdida.

- A forma como a narrativa do filme é montada passa pouco mais de 2/3 do filme focando na tansformação de Mulan em uma guerreira, o que é bastante compreensível, mas nos deixa um pouco a mercê das relações que são construídas dentro do seio familiar. Impossível não comparar, enquanto que na animação acompanhamos uma série de diálogos e momentos intensos entre Mulan e seu pai, no filme é a narração do pai, apenas, que nos faz perceber que ele a considera uma "flor que desabrocha na adversidade".

- A Mulan de Yifei Liu é bem menos arrebatadora do que a da animação, apesar de ser bem mais super heroína. Seus "poderes" de chi a tornam uma guerreira bem ao estilo d'O Tigre o Dagrão, enquanto na animação vemos uma garota obstinada que se destaca muito mais por sua persistência e inteligência, do que por seus dons mágicos sobrenaturais. Pessoalmente, achei isso uma perda para a narrativa.

Ademais, não quero dar spoilers, ou estragar a aventura para vocês. O saldo do filme, para mim, é positivo. Massageou a minha vontade de ver a minha personagem favorita na grande tela e, ao mesmo tempo, me trouxe uma vontade de compartilhar por aqui sobre. 

 

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