Entre as várias opiniões marcantes de Nelson Rodrigues talvez a que mais ficou comigo, tenha sido a sua ideia sobre a vida em sociedade. Nelson acreditava que era, ao observar as pessoas em seus contextos sociais que você conseguia ver as principais questões da humanidade, desde simples mentiras, até assassinatos e coisas bem mais escabrosas.
Com isso em mente e afirmando que Nelson foi um desses caras que conseguiu escancarar tudo isso, acredito que nós seríamos bestas de não pensar nele e sua forma atemporal de descrever as pessoas e seus demônios, ao assistir a série da HBO Big Little Lies.
Assinada por David E. Kelley, baseada no romance de mesmo nome de Liane Moriarty e com um elenco de peso dando conta disso tudo, Big Little Lies fala das relações sociais de uma comunidade suburbana norte americana. Ali, um terrível assassinato aconteceu e logo, os investigadores (e nós) descobrem que nem tudo era perfeito e que aquelas pessoas escondem veneno, ressentimento, desejo, dor e violência para dar e vender.
De fato, com um mote desses, a relação que a gente fez com Nelson Rodrigues no início desse review só se intensifica, enquanto, durante 7 episódios, nós vamos tirando as camadas de véus que escondem contratos sociais complexos e tantas vezes enervantes, de um mundo controlado por aparências e descontrole emocional. Principalmente, porque a série tem um ritmo próprio, quase uma letargia morosa de soltar as questões mais importantes e as que realmente têm a ver com o assassinato (ou assim a gente acha) lenta e "durosamente".
A falta de certeza inicial de quem é a vítima e o motivo de seu homicídio só aumenta a tensão e faz com que cada pequeno fato se torne ainda mais notável, sendo que ao longo dos episódios somos inseridos em quase que uma colagem de cenas do passado, do presente, de sonhos, ilusões, realidade e delírios. Então, não se surpreenda se, de repente, perceber que você não tem certeza de nada, já que isso faz parte da narrativa.
Outra questão que merece ser muito ressaltada é o protagonismo feminino, que assim como Nelson também observava, se embebeda das expectativas e da falsidade sociais, tornando a mulher prisioneira de uma vida misturada entre o que ela quer para si, o que ela acha que quer e o que os outros querem dela. Aí vêm os passados nebulosos, que assombram e as fazem tomar decisões loucas, revelando suas completas perdas de si mesmas...e que pancada que isso é.
No choque de vidas dessas mulheres, Madeline (Reese Witherspoon), Celeste (Nicole Kidman) e Jane (Shailene Woodley) - entre muitas outras - questões sobre maternidade, fidelidade, amizade e compromisso são destacadas, assim como maneirismos são escancarados e tudo isso num microcosmo próprio, regido por suas regras singulares, suas crenças e seus líderes -sejam eles eleitos, coroados ou ditadores. E nisso talvez more o outro grande trunfo dessa série, que é o de não deixar que os personagens se tornem simples e banais, ao mesmo tempo em que não os torna megeras e inalcançáveis.
Se fosse me alongar em falar de cada um dos membros dessa narrativa, provavelmente iria fazer um post muito maior do que é possível nesse blog, mas vale (e muito) destacar a complexidade de Reese, a vulnerabilidade e incompreensão de Nicole e a perturbação e raiva de Shailene, que juntas, não só ocupam o lugar de protagonismo, mas que ditam o tom e o ritmo de seus coadjuvantes, entregando-se de corpo e alma para as suas personagens.
Na verdade, Big Little Lies ganha muitos pontos em sua forma de apresentar diferentes pessoas, em torno de uma vida que eles pensam ser a melhor de todas, de modo que até um embate geracional tem espaço, quando crianças e adolescentes aparecem tentando quebrar com certos rituais da comunidade, do mesmo modo como quando os 20 e tantos anos é muito bem representado por uma mãe inexperiente e que tenta lidar com o fato de que precisa crescer para si e para seu filho.
Gerações a parte, as conexões entre as personagens (e não apenas as protagonistas) são marcadas por uma fotografia gélida e ao mesmo tempo sufocante, querendo dizer algo que se complementa com uma trilha sonora única, envolvente e que dá mais detalhes (e potência) sobre a história, pontuando com ainda mais excelência um final simplesmente surpreendente...